sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Fé atrás das grades

Na prisão de Aveiro sobeja tempo para a revolta, arrependimento ou desespero. Mas as grades não aprisionam a fé que semanalmente é alimentada por um padre.
O padre João Gonçalves, coordenador nacional da Pastoral Penitenciária católica, calcorreia há mais de três décadas as salas do Estabelecimento Prisional Regional de Aveiro (EPRA). "Para muitos, em tempo de sofrimento, a fé pode ser uma tábua de salvação. As pessoas vão falar connosco à procura de paz e serenidade. Há quem faça, enquanto cumpre pena, uma caminhada interior e ganhe esperança de viver um futuro diferente", diz o capelão.
Também há quem não mude. O padre consente. Mas "nas cadeias, o que sobra é tempo e o tempo não é para matar, é para ser vivido e aproveitado", defende, sem querer condenar, aos olhos de Deus, aqueles a quem a justiça terrena já sentenciou e a sociedade marginalizou. Habituou-se a passar para 'o outro lado', a "ouvir histórias e desabafos, mais do que falar e dar conselhos".
"Nas cadeias há de tudo", diz, recusando-se a desistir da lutar pela reabilitação e reinserção dos reclusos. "A filosofia que está subjacente a uma boa parte do código penal é a punição e o castigo", mas o papel das cadeias não pode ser apenas esse, daí que "a Direcção-Geral de reinserção Social deva ser valorizada".
No parlatório, a sala polivalente do EPRA onde o padre e alguns voluntários realizam, à segunda-feira, a cerimónia de celebração da palavra (a eucaristia apenas é celebrada no Natal e Páscoa), o altar é improvisado com duas mesas de café, uma toalha e uma cruz. Aqui não há capela ou sala exclusiva para celebrações e cultos, qualquer que seja a religião.
Apesar disso, dispostos em semi-circulo, sete reclusos não despregam os olhos das mãos com que o sacerdote segura a bíblia e vão tentando acompanhar os cânticos. As conversas dos guardas ao fundo da sala e o barulho do tráfego que entra pelas barras da janela não perturbam. Durante escassos 20 minutos o ambiente torna-se solene e a voz do padre enche a sala.
Aníbal, 72 anos, é crente assíduo. Leva três meses de prisão preventiva. A custo revela o motivo: homicídio. Mas diz-se inocente. "Sou católico e ia todos os domingos à missa, aqui tento fazer o mesmo. É uma fé que não se explica. Peço a Deus que me ajude no julgamento".
Ao lado, Fernando, 50 anos, quase um ano no EPRA, a ser julgado por tentativa de homicídio, admite que a fé lhe trouxe algum consolo e acompanha regularmente a celebração da palavra. "O mundo desabou e até era para me matar, mas Deus 'botou-me' a mão. Sempre que posso venho assistir à celebração".
Já Miguel (nome fictício), assistiu pela primeira vez à cerimónia. "Falaram-me e eu vim ver como era. Lá fora não ia à missa, só quando estava na Casa do Gaiato e era miúdo. Não sei se volto, o que eu quero mesmo é sair", confessa, no fim da cerimónia, apressado. O tempo que resta, de uma pena de "20 dias por infracção rodoviária", conta passa-los a "jogar às cartas e a ver TV".
As cerimónias modificam não apenas os reclusos. Amélia Campos, doméstica de 54 anos, acompanha o sacerdote há mais de um ano, num serviço voluntário de que não se arrepende. "Quando me convidaram, fiquei com receio, hesitei", admite. Hoje, "gostaria de poder fazer mais. Aprendi que devemos olhar para os reclusos como pessoas e não simplesmente como criminosos, independentemente do que fizeram. Parece que eles pagam pelo crime aqui dentro mas depois a sociedade põe um rótulo para toda a vida", lamenta.

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